A Internet é o novo parquinho

O mundo está se conectando pela internet, e com isso ele está se ajeitando às regras dela. A questão que todos querem saber é: o que isso significa para a gente?

Uma imagem em palavras

Por mais que a imagem sépia escondesse as reais cores do local, tudo dava a entender que era mais um dia de sol em um bairro qualquer do Rio de Janeiro. Talvez fosse sábado ou domingo, pois as ruas estavam populadas não só por crianças correndo e brincando, mas adultos em espreguiçadeiras também, que alternavam entre assistir seus filhos e ler as notícias no jornal. Alguns conversavam animadamente com seus vizinhos, outros só apreciavam o breve momento de paz que aquela semana os proporcionara.

Esse cenário pode parecer algo que eu inventei, mas foi, um dia, o nosso Rio de Janeiro. Por mais que eu tenha perdido a imagem que originou esse post, ela não sai da minha cabeça. Parece tão distante. Afinal, com a constante urbanização e concomitante digitalização da sociedade, espaços sociais, como uma rua numa tarde de domingo ou um parque em um dia ensolarado, estão lenta e gradualmente sendo substituídos por espaços digitais.

Não se vê gente puxando cadeiras para conversar com os vizinhos nos corredores de um apartamento. Parques se encontram em situação de abandono, tanto pelo poder público quanto pelo próprio público que o frequentaria. Lugares reais estão sendo substituídos por sistemas que tentam emular a experiência de estar lá. Aquela coisa que você ama fazer provavelmente já tem um subreddit ou grupo do Facebook dedicado.

Isso tem seus pros: é mais fácil encontrar pessoas e temas pelos quais você se identifica, e por meio da internet você pode manter o contato com essa gente sem ter que morar perto de ninguém. Identificação é a chave aqui: se o meio que você está é hostil às ideias que você cultiva, a internet pode propiciar um novo meio, para que você encontre similares e não se sinta mais uma ovelha negra. Essa transmissão de ideias cultivou subculturas, como a comunidade de speedrunning, e foi capaz de propiciar movimentos sociais e políticos, como a própria Primavera Árabe.

Mas, ainda que eu seja jovem, minha velha alma não me permite enaltecer os prós. Especialmente quando os contras falam tão alto.

Os Contras

O quanto vale o seu tempo?

Não é novidade para ninguém, e o cenário político atual serve de prova viva para o argumento: as redes sociais, do jeito que funcionam agora, estão criando bolhas socioculturais, limitando a capacidade de argumentação dos seus integrantes e segmentando-os para que não tenham seus pontos de vista confrontados. Diferentemente de uma rua de domingo, onde você não pode escolher quais as opiniões do vizinho que está na espreguiçadeira ao lado, redes sociais como Facebook e Twitter querem que você tenha uma experiência agradável enquanto estiver em seu feed, permitindo que você praticamente escolha quais vizinhos vão estar na rua.

Com isso, vocẽ não precisa ser confrontado com opiniões que venham a contestar seus pontos de vista e o jeito que você enxerga o mundo. Mas isso, por mais que pareça um pró, é também um contra: por meio do confronto entre ideias é que novas teorias e jeitos de pensar mais robustos e consolidados são criados. Pensar é, em si, um exercício, que, assim como um exercício físico, é incômodo. O fortalecimento da mente, assim como o do corpo, é feito botando ele à teste e em situações adversas, para que possa ser estressado e desgastado, a fim de que ele saia da situação mais forte e capaz.

Mas a sua rede social favorita não quer que você passe por estresse na plataforma dela. A experiência tem que ser agradável, prazerosa e, preferencialmente, sem contradições. Com isso, quem sabe inadvertidamente, elas foram desenvolvidas para que você fosse alimentado somente com o que você quer ver, e isso só pode ser feito te mostrando o que não cria estresse mental. O que não te faz pensar, mas te diverte e te conforta com afirmação dos seus pontos de vista.

Por que eles fazem isso? Tem algum motivo nefasto para que eles manipulem sua visão de mundo? Por mais que escândalos como o da Cambridge Analytica mostrem que eles sabem do efeito que suas bolhas causam (e tem o interesse claro de lucrar com isso), o motivo maior para as recomendações é relativamente simples: eles ganham dinheiro com sua atenção. O tempo que você passa scrollando no seu feed, seja de Facebook, Instagram, Twitter ou o que for, é tempo que você está sendo exposto para propagandas. Essa exposição te propicia a comprar de certas marcas ou clicar em links promocionais, dando dinheiro para a plataforma.

Em outras palavras, você dá o seu tempo de vida para uma plataforma que em troca te alimenta com informações duvidosas, memes engraçados e opiniões sem fundamento mas reconfortantes. Essa troca é aceita por muitas pessoas.

Mas quem sai ganhando?

O quanto vale você?

Para fazer um bolo e ganhar dinheiro com isso, você precisa comprar os ingredientes; produzi-lo e vendê-lo por um preço um pouco maior do que custou para fazê-lo. O quanto você vai lucrar em cima desse bolo depende da diferença do preço de venda e o de compra, que, por sua vez, depende do preço dos ingredientes. Quem compra um bolo o faz por vários motivos, mas no geral é porque pretende ter uma experiência prazerosa comendo ele.

Para fazer uma rede social e ganhar dinheiro com isso, vários ingredientes são necessários. Desenvolvedores; pesquisa de mercado; usuários interessados em utilizar a plataforma; um sistema de propagandas e vários outros que não sou qualificado para dissertar sobre. No entanto, o ativo principal para qualquer rede social, tanto para capturar quanto manter a atenção do usuário, são dados. Tempo que a pessoa vê o post; se comentou; se deu like ou dislike, vários pequenos pedaços de dados de telemetria que, juntos, montam uma imagem de quais são os interesses da pessoa. Por meio da coleta de dados, as redes sociais são capazes de montar uma persona sua a partir do seu uso, e, com isso, descobrir quais posts vão manter você mais tempo olhando para telas, utilizando, interagindo. Basta abrir uma aba anônima em algum site como YouTube e clicar em qualquer vídeo; sua aba de recomendados será populada por conteúdo parecido, que, teoricamente, te fará consumir mais da plataforma.

É um ativo importantíssimo para redes sociais. Um ingrediente muito valioso. Quanto custa?

Nada.

A coleta de dados de uso para telemetria é uma prática comum em grande parte dos serviços digitais, serve de base para algoritmos que fazem grande parte da nossa vida ( como os algoritmos de recomendação ), é responsável pelo lucro de empresas multimilionárias como Facebook e Amazon, mas não custa nada para ser coletado. Você, meu caro leitor, é, dia a dia, sugado de todo possível dado que é possível extrair de ti, num esforço pífio de te manter mais tempo com os olhos na sua tela de preferência. Você é o gado das fazendas digitais, e essa é uma metáfora que eu não uso de forma fútil.

Voltando para o bolo, você compra ele para comê-lo. Ele serve para você melhorar a sua vida, nem que seja por um breve momento. Podemos dizer o mesmo das redes sociais? Se a tecnologia era para ser uma ferramenta para as pessoas, por que nós que somos o gado? A quem servem as redes sociais?

A troca entre usuário e plataforma, no modelo de negócio atual que lucra em cima da atenção das pessoas, está completamente desigual. O tanto que as redes sociais nos servem não compensa o que elas servem para seus donos e as marcas que lucram com propagandas. Nós estamos sendo reduzidos a zeros e uns, personificados em modelos matemáticos e divididos por nossas preferências, e em troca o que ganhamos é aquele sentimento de insuficiência, de que se abrirmos a plataforma mais uma vez, talvez algo realmente interessante aconteça.

E assim, várias pessoas passam porcentagens consideráveis dos seus dias interagindo pelos meios digitais, sendo estudados por máquinas para que fiquem mais tempo. A sociedade começa a se digitalizar, seguindo os termos de uso de terceiros. Como isso tem transformado a gente?

Cada um no seu canto

Na vida, frequentamos espaços sociais, como trabalho, academia ou praia. Neles, nos encontramos com outras pessoas, e por meio da convivência nesse espaço, passamos a conhecê-las e, quem sabe, fazer uma amizade. Por mais que o seu perfil seja introvertido, em algum momento na sua vida você teve um sentimento de familiaridade com alguém que frequenta os mesmos lugares que você. Humanos são seres sociais, é mais do que natural que queiramos fazer amigos quando estamos num ambiente social. E, com a mudança para o digital, não seria diferente.

É importante deixar claro que o meio nos diz como que as interações sociais vão acontecer. É considerado rude falar alto numa biblioteca. É comum que duas pessoas conversem quando seus cachorros se entrosam durante uma caminhada matinal. Pessoas trabalhando para um mesmo objetivo tendem a comunicar mais, como no trabalho ou em salas de aula.

Sendo assim, como que o meio digital induz a comunicação entre seus habitantes? Como dito antes, por causa da fuga do estresse, é vital para as redes sociais a existência de espaços com pessoas de opiniões similares. Onde há muitas pessoas iguais, a repetição de tópicos e opiniões prevalesce, e isso gera câmaras de eco, onde “ganha quem fala mais alto”. Com isso, surge o conceito de viralidade. A opinião mais repetida, ou a voz mais ecoada, consegue reverberar para todos que frequentam o meio e atingir muita gente, fazendo com que aquilo que ecôou se torne um micro fenômeno, ou seja, viral. Beneficiado por funcionalidades de engajamento como likes e compartilhamentos, sua consolidação moldou o modo de comunicação do meio.

No meio digital, diálogos não engajam, eles podem levantar sentimentos ruins para os usuários. O viral é efêmero; fútil e raso. Um meme engraçado que dura alguns meses, uma piada bem colocada, uma opinião que soa legal, uma música que estoura sem motivo aparente. Algo simples de ser reproduzido e copiado por outras pessoas. Desde que seja acreditável ou que reforçe uma crença sua, pode ser viral. Como os terraplanistas provaram, não precisa nem estar certo. Basta se alimentar de questionamentos simples da vida e retornar respostas igualmente simples que haverá engajamento.

O problema mora no fato de que isso é reflexivo: assim como o real está influenciando a interação digital, o digital afeta o real. Opiniões rasas estão sendo compartilhadas fora dos grupos, e o método de discussão da câmara de eco e de fatos simplórios prevalescem, chegando a extremos onde, mesmo com as provas da contraditoriedade de um argumento nas mãos, as pessoas continuarão a defendê-lo. Novamente cito os terraplanistas, que fizeram um experimento para provar sua teoria, mas conseguiram provar sua curvatura. Verdades são vendidas na internet como a pílula vermelha do Matrix (que ironicamente é o nome de outra comunidade extremista online, quem diria).

Essas verdades inquestionáveis levam à crença de que quem não vê o que você vê tem que ser o maior dos idiotas. Não tem motivo nenhum para que você se relacione com alguém que enxerga o mundo desse jeito, então você se isola. E de repente as comunidades digitais, tentando dar luz às coisas que nos unem, deixou evidente o que nos divide, e, com cada um no seu canto, entramos na era da solidão.

Daqui para aonde?

A natureza de relações mediadas por redes sociais, com suas câmaras de eco e subculturas extremamente desconectadas umas das outras, criou uma geração de indivíduos que vêem o mundo com uma lente meticulosamente personalizada, que mostra somente sua própria definição de correto. Essas pessoas estão se acostumando mais e mais a ver somente o perfeito, e encontrar suplementos digitais a necessidades reais do ser humano. O tempo passado consumindo o digital faz com que o que era pra ser complementar passa a ser o todo, e assim surge uma sociedade dividida, que não mais reconhece no outro as semelhanças por só conseguir enxergar as diferenças.

As empresas que possuem essas redes sociais não tem preocupação clara com o efeito social causado pelo seu produto e seguem investindo dinheiro e recursos para manter usuários interagindo e se conectando da maneira mais lucrativa possível. Ao que os registros aparentam, os esforços alocados para o impacto social de suas plataformas são ou descartados ou meramente mencionados em coletivas de emprensa para manter investidores calmos e investindo. E nós seguimos como estamos. Usuários de um sistema que nos usa.

E aí? O que a gente faz?

Pense

Como disse antes, tecnologia é uma ferramenta. Ela serve para facilitar trabalhos complicados e, no geral, para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Do jeito que as coisas estão, não somos nós que estamos usando essas ferramentas: somos o gado, a fonte do lucro de terceiros que só querem enriquecer mais. Não precisa ser assim. Como usuário de redes que usam você, saiba quando você está usando a ferramenta e quando você estiver sendo usado por ela. Tenha um propósito quando for abrir Twitter, Instagram ou o que for, não abra só para saciar sua vontade de ter algo pra ver. Valorize seu próprio tempo: nenhum segundo dessa vida passa duas vezes.

Defenda-se

A luta pela privacidade não é só de pessoas que tem algo a esconder, é de todos. Os seus dados estão a leilão nesse momento, e os compradores não tem seus melhores interesses em mente. A regulamentação da coleta de dados de telemetria vai demorar, então procure conscientizar-se sobre ela. Por meio desse texto eu só introduzi o assunto, não sou especialista. Sou só alguém que cresceu numa rua onde todos se conheciam, para agora ver que os que estão do nosso lado nem se vêem mais como vizinhos. Uma pessoa preocupada e que não quer ficar calada.

Valorize seus dados. Não é porque você não tem nada a esconder que significa que você não tem nada que terceiros desejam. Procure por serviços que não coletam telemetria ou cujos dados coletados sejam o mínimo necessário para a manutenção do sistema. Evite sistemas de recomendação. Bloqueie propagandas. Faça com que os serviços que usa percebam que o que estão fazendo não é mais desejado.

Reinvente

Uma rua de um bairro do Rio de Janeiro, com espreguiçadeiras, crianças correndo e um sol de verão. Jornal na mão, ou quem sabe uma cerveja no copo. Jogando papo fora com alguém enquanto aproveita o final de semana.

Essa imagem precisa ser antiga? O que ela representa não precisa morar no passado. Ironicamente, num mundo de conectividade, o que falta é o que essa imagem encapsula: conexão. Comunidade, não por termos todos pontos em comum entre nós, mas por procurarmos pontos em comum no outro. Por focar no que nos une, e não no que nos separa. Com ou sem tecnologia, só vamos chegar em algum lugar enquanto estivermos juntos.

Eu não vou pagar de mãe aqui e falar “saia desse telefone e vai viver a vida, moleque”. Eu vou fazer uma melhor.

“Traz o teu telefone junto, só não deixa de viver a vida”.